Mas os falubosos Bentley Boys proporcionaram, provavelmente, uma das histórias mais inesperadas da indústria automóvel. De um lado, um engenheiro pragmático e focado no negócio, do outro, um grupo de bon vivants dispostos a gozar ao máximo o prazer dos anos loucos do século XX.
O cenário são os anos 20. A Europa acabou de lamber as feridas da primeira grande guerra e explode em excessos. Para um punhado de afortunados, é a era dos "anos loucos", que haveriam de inspirar o Grande Gatsby de F. Scott Fitzgerald, o choque Coco Chanel, ou a realidade distorcida de Dali. O ritmo é o do Jazz e do Charleston. E o champanhe flui abundantemente, tal como o dinheiro. Em Londres, um engenheiro mecânico, de seu nome Walter Owen Bentley, acabara de fundar, em 1919, uma marca de automóveis, perseguindo o sonho de construir "um carro bom, rápido e o melhor da sua classe"... Isto porque achava os carros da altura "perigosos, rudimentares e incapazes de satisfazer um gentleman driver".
Em 1924, um Bentley vence a segunda edição de uma competição que estava a conquistar a fama: as 24 horas de Le Mans. W.O.Bentley, que antes considerara aquela uma "corrida estúpida", porque nenhum carro poderia sobreviver a tal provação, tinha acedido participar com objetivos mais estratégicos do que por impulso: uma das características dos "anos loucos" foi precisamente o crescimento em popularidade das corridas de automóveis e W.O., num sinal claro da sua enorme visão, considerava que elas eram melhores do que publicidade para a construção da reputação da marca. São dele as palavras: "Ficaria muito satisfeito em ver os nossos carros às voltas em Le Mans, mesmo que fosse numa solidão inglória, desde que o Daily Mail nos desse a primeira página na segunda-feira".
O que viria a seguir servia na perfeição os intentos de Mr. Bentley. O sucesso de 1924 atraiu a atenção de um grupo de homens, tão ricos quanto dados a excessos, cheios de vontade de entrar no mundo das corridas. Estava reunida a elite que viria a dar origem aos lendários Bentley Boys, vencedores de Le Mans quatro vezes consecutivas, entre 1927 e 1930, naquela que é uma das páginas mais brilhantes da história do automóvel.
Entre estes cerca de 20 "boys" estava Woolf "Babe" Barnato, o mais rápido de todos e o herdeiro da fortuna de diamantes das minas Kimberley; Glen Kidston, ex-oficial da Marinha e aventureiro; o Barão André D'Erlanger, banqueiro e popular playboy internacional; Sir Henry "Tim" Birkin, milionário com carreira na Royal Air Corps; J. Dudley Benjafield, médico da Harley Street, a rua de Londres onde se concentravam os clínicos mais requisitados; e, claro, Frank Clement, o dedicado profissional da Bentley que havia sido um dos pilotos na vitória de 1924.
Estavam reunidos os ingredientes para o glamour em torno das vitórias da marca e que acabaria, de resto, por marcar a forma como os fãs passariam a olhar para os grandes nomes do automobilismo durante todo o século XX. W.O Bentley sabia que isso era bom para a sua marca: "O público gostava de os imaginar vivendo com várias amantes e, claro, vários Bentley rápidos, bebendo champanhe em night clubs, apostando em corridas de cavalos e na bolsa, e combatendo furiosamente nas pistas durante o fim-de-semana. Para alguns deles, este não era um retrato muito longe da realidade..."
A paixão pelas corridas inspirou uma legião de fãs do automobilismo e da Bentley, fazendo com que esta aura em torno dos Bentley Boys percorresse o mundo. Mas seria isto suficiente para cinco vitórias em oito anos na exigente prova das 24 Horas de Le Mans, quatro das quais consecutivas? O outro lado da história diz-nos que não. E por três razões essenciais: o espírito omnipresente e assertivo de Walter Owen, o empenho dos "boys" nos dias de corrida e a forma como eram construídos os carros.
Poderia não ter sido assim, mas a verdade é que o entusiasmo caminhou na direção certa. Ao mesmo tempo que W.O. proibia a presença de namoradas nos dias de corrida, os gloriosos pilotos transfiguravam-se, abstendo-se da boémia, champanhe incluído. Dedicavam-se, juntamente com os mecânicos da Bentley, a praticar vezes sem conta as paragens na boxe e a treinar intensamente todos os detalhes da prova. Mais: Mr. Bentley não corria riscos de perder e instituiu o procedimento de reconstruir todos os carros entre corridas. E não podemos deixar de pensar como todos estes métodos eram avançados para o seu tempo...
Um dos carros mais míticos da história da Bentley foi também um dos mais bem sucedidos em Le Mans: o famoso Speed Six, derivado do modelo de produção de 6,5 litros e que debitava uns impressionantes 200 cv às 3500 rpm. Este modelo, que venceu as 24 Horas de Le Mans em 1929 e 1930 (neste ano com Barnato, então já o chairman da Bentley, ao volante).
Engenheiro de formação e com uma vocação eclética para a mecânica, W.O. trouxe o seu espírito inovador para os carros com o seu nome. Durante a sua comissão na Royal Naval Air Corps, Bentley tinha-se notabilizado ao utilizar o alumínio em motores de aviação, uma estreia bem recebida numa altura em que a Europa se preparava para a Primeira Grande Guerra. Mas depois do conflito, os tempos mudaram: era a hora de passar rapidamente este know-how para os automóveis de topo.
W.O sabia que este material permitia melhores condições de arrefecimento e, acima de tudo, uma drástica redução de peso e os Bentley se tornaram-se, assim, os primeiros carros da história a usarem pistons de alumínio. Dono de uma personalidade persistente, conseguiu desenvolver uma liga resistente às forças do motor e às elevadas temperaturas. Outros tentaram e falharam, pelo que continuaram a usar pistons em ferro fundido ou aço, mais pesados e muito menos eficientes.
A robustez era outros dos mais reconhecidos atributos dos Bentley, o que valeu na época o comentário de Ettore Bugatti, considerando-os "os camiões mais rápidos do mundo". Para Walter Owen Bentley, a frase do seu concorrente até ajudou... na verdade, às vitórias, ao glamour e aos clientes famosos, sempre se acrescentava a fiabilidade de um bom produto.
As palavras de W.O. são sintomáticas do valor histórico da Bentley e da sua marca inigualável na indústria automóvel: "Penso que não haverá muitas companhias que tenham conseguido construir em tão pouco tempo uma fonte tão rica de lendas, mito e história. A marca atraiu o gosto do público e acrescentou um toque de cor, glamour e emoção às suas vidas".
Vitórias dos “Bentley Boys” em Le Mans
Ano | Pilotos | Modelo | Voltas | Distância |
1930 | Woolf Barnato/Glen Kidston | Bentley Speed Six | 179 | 2930.663 km |
1929 | Woolf Barnato/Henry Birkin | Bentley Speed Six | 174 | 2843.83 km |
1928 | Woolf Barnato/Bernard Rubin | Bentley 4½ Litre | 154 | 2669.272 km |
1927 | Dudley Benjafield/S. Davis | Bentley 3 Litre Sport | 137 | 2369.807 km |
1924 | John Duff/Frank Clement | Bentley 3 Litre Sport | 120 | 2077.341 km |
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